sábado, 7 de agosto de 2010

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Li recentemente um artigo que me chamou muito a atenção e que permaneceu na minha cabeça alguns dias. Era um paralelo entre o pensamento e obra de duas das minhas autoras prediletas: Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus.
A primeira dispensa maiores explicações porque é conhecida, é uma das maiores escritoras do mundo e teve seu talento reconhecido, embora também tenha sido muito criticada porque como sempre escreveu sobre questões existenciais, sentimentos, buscava respostas subjetivas, era chamada por muitos de alienada. Ora, com tantos problemas e ela ocupava-se escrevendo sobre questões interiores!
Eu pessoalmente reconheço nela um talento raro de traduzir sentimentos que muitas vezes não sabemos expressar, ou pelo menos não com tanta arte. Sua marca era as metáforas utilizadas, que, somadas ao seu jeito único de narrar resultavam textos de rara beleza.
O paralelo foi feito pelo fato de as duas autoras serem vozes femininas bastante representativas no sentido de expressarem de alguma forma um protesto.
Mas agora falemos de Carolina, por sua vez bem menos conhecida: Carolina conta sua vida através de seus livros em forma de diários que ela foi escrevendo ao longo da vida. Ela era negra e desprovida de qualquer conforto material, ou melhor, sejamos diretos, viveu em miséria extrema. Cursou até o segundo ano do ensino fundamental, mas narrou sua história através se seus livros de forma esplêndida e conseguiu dessa forma fazer várias denúncias acerca do descaso, da indiferença, do desrespeito para com aqueles que sequer têm providas as necessidades básicas para um indivíduo viver de maneira saudável. Ela expressa isso de uma forma única, mas apesar disso foi barrada pela elite intelectual devido à baixa escolaridade e devido também e principalmente ao conteúdo de seus livros. Seus protestos se ouvidos poderiam provocar alguma reação, talvez incentivar alguma providência da parte do Estado, de alguma forma fazer alguém se importar e fazer algo para sanar tamanho sofrimento. Esse sofrimento é o preço pago para que alguns tenham um bem estar a meu ver injustificável. Para uma meia dúzia de burgueses ter tanto luxo milhões estão pagando um alto preço que é a fome.
Nesse artigo falava que Carolina era uma escritora que não ter a regalia de sofrer com questões existenciais.
Agora acho que chego onde quero chegar: Sofrer por questões interiores, por não achar respostas para conflitos de ordem existenciais é sim uma regalia, e associo o aumento do número de pessoas com algum quadro depressivo ao aumento da qualidade de vida.
Ora, e como alguém com uma vida como a da Carolina, tendo que catar lixo para vender para conseguir alimentar os três filhos vai agora parar para cultivar a dor de existir? Como ela vai pegar os poucos trocados que consegue juntar e deixar de comprar arroz e pão para ela e os filhos e comprar fluoxetina, rivotril e lexotan?
“Ah não, hoje não poderei trabalhar porque meu corpo só tem vontade de continuar na cama e estou sofrendo com tristeza extrema... meus filhos que esperem mais alguns dias para comer enquanto minha tristeza passa.”
Muito fácil para quem não tem que contar moedas ficar choramingando porque a vida está ruim. Porque dói algo não se sabe onde nem porque. Penso que pode até ser um certo remorso inconsciente por ter tanta gente vivendo de maneira desumana e a pessoa está bem, então ela tem que inventar um problema. Ou talvez porque a vida anda monótona, sei lá, um probleminha, mesmo que inventado talvez ajude...
Ah mas são questões físicas, a ciência já comprovou, alguns afirmam. Ótimo! Usemos então a tática de desviar o foco da dor: pega um infeliz desses que ta deprimidinho e bota pra lavar roupa na mão o dia inteiro, ou capinar, andar o dia inteiro no sol que aí a dor que ele vai sentir nas costas, nas pernas vai fazê-lo esquecer das aflições.
Certa vez na faculdade, numa determinada disciplina que não lembro agora qual foi, a professora passou um filme que mostrava duas realidades distintas: no primeiro víamos adolescentes em crise, “sofrendo” porque tinham que se dedicar muito aos estudos, porque nas suas escolas particular caríssimas conseguir atingir a média não era algo fácil e ainda tinham que conciliar o curso de inglês (...), fora que é difícil lidar com o fato de ter tanto dinheiro.
Depois mostrava adolescentes no interior do país, nos lugares mais pobres possíveis, sofrendo também, mas por outra razão: eles não tinham comida, nem sandálias, nem transporte para se locomoverem ate a escola, e tinham que ir a pé no sol.
Depois do filme a professora deu inicio à tortura, que ela chamou de debate. Tínhamos que falar sobre o que achamos da situação exposta no filme e pasmem: as pessoas acham que são dois tipos de sofrimento distintos, mas que não existe um que pode ser considerado mais grave. Os dois devem ser vistos com a mesma importância. A questão dos primeiros alunos (não sei como chamar essas questões) são tão dolorosas quanto a fome dos segundos e existem outras fomes tão graves quanto a fome de comida. A quem pensa assim, sugiro que tente passar cinco dias sem comer absolutamente nada a andando no sol.
Utopia tem limite, frescura principalmente.

7 comentários:

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  2. "A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem."
    Nelson Rodrigues

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  3. Lu... sei lá... achei um post um pouco distante do que você mesma vive, tipo "da boca pra fora"... que vc passa perrengues eu sei, muitos, mas já te vi tantas vezes com essa dor que não se sabe donde vem. E dói, você sabe disso. Acho que a dor de passar fome e trabalhar no sol o dia todo dói mais que qualquer outra e não permite a regalia de ser existencialista... mas acho perigoso, um pouco desonesto, falar como se alguns problemas fossem frescura, problemas esses que você já experimentou... sei não, talvez convença quem lê seu blog e não te conhece como eu conheço, a mim pareceu um discurso bonito, com argumentos que eu partilho, mas, parcial. E sobretudo, um discurso.

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  4. Uhm... também não sei se a dor de ter a infância destruida por abusos é menor que a da fome... talvez porque a fome que eu passei foi pouca.

    A história do natal e outras são muito boas. Tá legal o blog!

    Não vamos começar uma DR pelo comentário... =P o blog é um espaço livre! Amo tu!

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  6. Talvez não me conheça tanto então. Não esteve nas aulas comigo quando várias vezes eu me senti agredida por comentários como os que eu citei no texto. Meus perrengues, minhas dores eu sei e sempre soube de onde vem. Nunca as inventei! Não espero convencer ninguém. Nem sabia que meu blog era lido por você e uso ele meio que como um diário. Não foi desonesto e se você achou, sugiro que releia. Sugiro também caso interesse que você se atente mais quando eu tiver esses perrengues e depois me fale se são mesmo sem causa. E por me conhecer a mais de onze anos, achei que você já tinha reparado que eu sempre luto contra certas coisas minhas por não achar justo. Por tantas vezes achar que eu não tenho direito de sofrer por dores existenciais enquanto tem gente com tantas dores mais concretas que as minhas. Deve ser estranho amar alguém tão desonesto quanto eu. Sem DR, podexá. Prefiro me ocultar sobre algumas questões e diria que você inclusive já percebeu que estou fazendo isso de um tempo pra cá. Mas diante da demonstração do quanto você me conhece expressa nesse seu comentário, já não sei.

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